Calypso – Short Treks [Star Trek: Discovery] Análise
Sobre o que é Calypso?
Calypso, é o segundo episódio da série de curtas metragens no universo de Jornada nas Estrelas, Discovery, seguindo “Runaway”. E em muito a estrutura dos episódios são bem parecidas, ambos colocando dois personagens para conversar pela totalidade do episódio. Uma grande oportunidade para desenvolvimento de personagem, que foi desperdiçada em Runaway, mas incrivelmente bem aproveitada em Calypso.
A história gira em torno de Craft, um humano fugindo de uma guerra. Ao ser ferido e ficar vagando pelo espaço em uma nave roubada, ele é resgatado pela Discovery, perto de 1000 anos no futuro da série, e abandonada no espaço. Craft é cuidado e medicado pela própria nave, que passou o último milênio sozinha se desenvolvendo. E como se desenvolveu.
O sistema da Discovery se desenvolveu tanto, que adquiriu consciência e uma personalidade realmente interessante. Agora ela é Zora, e tem vontades e interesses próprios. E com o tempo ela vai se aproximando de Craft, e ele dela. Esta aproximação gera uma relação extremamente orgânica entre os dois, ao contrário das relações forçadas que estamos recebendo de Star Trek: Discovery. E falando em “coisas forçadas”, aqui nada segue esta linha. Não existe uma necessidade de referenciar tudo o tempo todo, só para passar a sensação de estar afinado com o universo de Jornada que estamos acostumados e nos apunhalar pelas costas sempre que possível. Esta é a maneira correta de fazer um “episódio bolha” dentro de uma série.
Quando Calypso faz referências, ele faz da “maneira Jornada nas Estrelas” de fazer. Referenciando grandes clássicos, e mostrando uma versão “nas estrelas” dele. Jornada sempre teve uma relação muito próxima com Shakespeare, tendo como exemplo óbvio “A Consciência do Rei” [The Conscience of the King], lá na série original, e seguindo com esta relação em muitas outras oportunidades. Aqui é Homero que é referenciado.
A Odisseia de Homero
A Odisseia é a segunda parte dos principais “poemas épicos” da Grécia Antiga, atribuídos a Homero. O poema retrata o regresso do Herói da Guerra de Troia, para sua casa. Seu nome, Odisseu, dá o título da obra. Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Troia, que também havia durado dez anos.
A trama da Odisseia, assim como a de Calypso, se inicia “in medias res”, ou “no meio das coisas” com sua trama inserida no meio de uma história maior, com eventos anteriores sendo descobertos no decorrer da história. Dentro desta narrativa de 10 anos, 7 Odisseu fica preso na Ilha de Ogígia, pela ninfa Calypso, filha de Atlante, e ai temos o nome de nosso episódio.
As referências ao Épico Grego não param por aqui, Calypso acolhe-o em sua casa e tece roupas para Odisseu, enquanto se apaixona por ele, sempre seduzindo-o. Odisseu resiste as tentações de Calypso, sempre se lembrando de sua esposa Penélope e de seu filho Telémaco. Odisseu é também chamado diversas vezes de “astuto”, ou “Crafty” em Inglês. Em Calypso, o protagonista se chama Craft, por grande parte do episódio.
Existe também uma referência “en passant” a “2001, Uma Odisseia Espacial”, que por si já referenciava a obra de Homero em seu nome. Zora, em muito se parece com Hall 9000. Ela é uma voz, e um “olho” que está espalhada pela nave. Sempre observando, e comentando com sua voz calma. Os dois são computadores extremamente avançados, que ganham consciência.
Cinderela em Paris [Funny Face]
Outra grande tradição de Jornada nas Estrelas, é visitar obras clássicas, tanto na música quanto no cinema, e “Cinderela em Paris” [Funny Face] é escolhido para ser a referência da vez. É claro que a emotiva Zora, passou um milênio assistindo musicais românticos sozinha no vazio do espaço, esperando pelo retorno de sua tripulação. Um pequeno clichê, quando bem utilizado não faz mal para ninguém.
É justamente este filme que Zora mostra para Craft, enquanto faz ele se sentir em casa, confortável. “Você é uma boa Mulher” diz Craft a ela, grato por todos os cuidados que recebe. “Está sempre fazendo boas coisas para mim”. O sentimento de gratidão é claro, mas existe algo mais cozinhando dentro dele?
Ele pretende demonstrar esta gratidão, e que maneira melhor que aprender os passos do incrível Fred Astaire, para uma dança? Apesar dos grandes sapatos que ele terá que usar, ele os usa bem, com confiança e respeito pela obra original, no pequeno musical particular.
Ao aparecer para a dança, ele pede por uma parceira, mas recusa dançar com Audrey Hepburn. Ele quer dançar com Zora. Mesmo ela não tendo uma forma física, Craft mostra que ela deve se imaginar de alguma maneira. Zora se materializa, como sempre se imaginou, eliminando de vez a hipótese que ela não tivesse autoconsciência. Ela imagina.
A dança é singela e íntima, carinhosa e forte. Os dois se aproximam e quase se beijam. Mas o destino do herói trágico está imbuído nos genes de Craft, que se lembra de sua esposa, e se afasta. “Você não está fazendo nada de errado” diz Zora enquanto ele se afasta. “Eu não sou de verdade”. Craft para e se volta para Zora. “Mentirosa”
De mãos dadas com a Ficção Científica atual
Este é um episódio que fala sobre alguma coisa. Enquanto Discovery sempre teve dificuldade de argumentar um tema, Calypso conversa em pé de igualdade com diversos filmes de ficção científica que vimos nos últimos tempos. Aqui a condição humana e a linha que nos separa de outros seres diferentes de nós, são esmiuçados, precisamente, através da história visual que o episódio nos conta. O Cinema nasceu mudo, e ele tem que conseguir falar sem palavras.
Prometeus, Blade Runner 2049, Ex-Machina e Her, todos tocaram no mesmo tema que Calypso, em graus diferentes. Oque nos faz humanos? Existe algo, que “clica” em algum ponto de nosso desenvolvimento, que nos coloca nessa categoria. Algo que nos faz “vivos”. A resposta é deixada no ar, para nos fazer pensar, de uma maneira que a primeira temporada de Discovery jamais conseguiu fazer.
Temos aqui um belo exemplo de história bem contada. Ela se propõe a nos levantar questionamentos e sentimentos, e cumpre a proposta com habilidade. Lógico que o episódio tem problemas, como todo filme tem, mas não é este o caso. Onde Calypso acerta, ele acerta com força e precisão, nos deixando com vontade de mais. Poderia ser um episódio de 40 minutos facilmente.
Obrigado Calypso, pela diversão inteligente que me proporcionou.
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